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Manifesto EBBC

MANIFESTO POR UMA POLÍTICA DE ACESSO ABERTO E MELHORES PRÁTICAS DE AVALIAÇÃO DA CIÊNCIA

O “MANIFESTO EBBC POR UMA POLÍTICA NACIONAL DE ACESSO ABERTO E MELHORES PRÁTICAS 
PARA A AVALIAÇÃO DA CIÊNCIAS NACIONAL” foi construído no âmbito do 9º Encontro Brasileiro de Bibliometria e Cientometria (EBBC), realizado de 23 a 26 de julho de 2024, em Brasília – DF, Brasil a partir das discussões de Araújo, Sacramento e Barcellos (2023). Ele recomenda instituir uma Política Nacional de Acesso Aberto que dialogue com a Política Nacional de Avaliação Científica para que seja possível avançar rumo à consolidação de uma ciência aberta, inclusiva, democrática, transparente e plural. 
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Autoras: Kizi Mendonça de Araújo; Paula Carina de Araújo e Michely Jabala Mamede Vogel

Colaboradores: João de Melo Maricato, Rodrigo Costas Comesaña, Simone da Rocha Weitzel, Ronnie Brito, Claudio França, Maria Claudia Cabrini Gracio, Washington L. R de Carvalho Segundo, Ronaldo Ferreira de Araújo, Marcia Regina da Silva, Fábio Castro Gouveia, Sônia Elisa Caregnato, Maria Elisa Luiz da Silveira

 

PANORAMA: 

A forma como o conhecimento científico é criado e disseminado tem se alterado ao longo dos anos. A sua compreensão como bem público, que deve estar acessível abertamente, e a necessidade de incentivo à sua democratização, é consenso entre a comunidade científica e, cada vez mais, entre os não acadêmicos que fazem uso dos resultados da atividade científica direta ou indiretamente.

Desde os anos 1990, diversas ações envolvendo a comunicação científica tomaram a forma de um movimento de reação aos modelos de disseminação da informação e do conhecimento com altos custos e barreiras de acesso, entraves que fomentam as desigualdades entre comunidades científicas, sobretudo entre países economicamente avançados e países periféricos. Entre essas ações, pode-se citar: i) a criação do surgimento do software livre; ii) a criação da Scientific Eletronic Library Online (SciELO) (1997); iii) o lançamento do Open Archives Initiatives (OAI) na Convenção de Santa Fé (1999).

Dentro dessa perspectiva, em 2002, o Movimento de Acesso Aberto se estabelece com o objetivo de romper a lógica comercial de acesso ao conhecimento, buscando tornar público e gratuito o acesso aos resultados da atividade científica. É na Declaração de Budapeste que o termo e o conceito de Acesso Aberto são apresentados à comunidade científica pela primeira vez. Há que se dar destaque também, no Brasil, ao programa de Acesso Aberto e Ciência Aberta do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), em execução desde 2005.

Passados 22 anos do marco do Movimento Acesso Aberto, alguns avanços foram alcançados em prol da abertura do conhecimento, entretanto, ainda existem barreiras que precisam ser transpostas para que seus objetivos sejam efetivados em toda a sua plenitude.  

Uma das principais barreiras ao Acesso Aberto diz respeito às bases de dados comerciais, que se restringem a um grupo reduzido de periódicos nelas indexados, sub-representando a produção científica de países do Sul Global. Essas bases são utilizadas para planejamento de políticas de avaliação da produção científica, baseadas em indicadores de citação, que por seu viés de cobertura subestimam os reais impactos da ciência. Tal fato contribui para a manutenção da lógica de mercantilização da ciência, operada por meio de um modelo de negócios que visa lucro, no qual as editoras que controlam essas bases detêm o poder de decidir o que é visível, relevante e que por consequência se torna objeto de valor na comunidade científica. Como resultado, tem-se uma concentração de conhecimento em mãos de poucos, limitando a diversidade de perspectivas científicas e comprometendo o acesso ao conhecimento de forma livre e sem barreiras, em oposição ao disseminado pelo Movimento do Acesso Aberto.

Em virtude dessas barreiras, destacamos aqui três aspectos que impactam negativamente a plena concretização do Acesso Aberto na atualidade, no que diz respeito ao contexto brasileiro: 1) os critérios definidos para a qualificação de periódicos para avaliação da pós-graduação brasileira, que culminam no Qualis periódicos; 2) o pagamento das chamadas Taxas de Processamento de Artigos (Article Processing Charges – APC); e 3) a assinatura de Acordos Transformativos ou Acordos “ler e publicar”.

Os critérios de qualificação de periódicos propostos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para avaliação da pós-graduação brasileira, mais conhecido como Qualis Periódicos, têm influenciado negativamente a dinâmica da produção científica nacional. Apesar da recente e amplamente contestada reformulação do Qualis Periódicos, seus critérios ainda são fortemente centrados em indicadores de citação provenientes das grandes bases comerciais do Norte Global. Esses indicadores valorizam predominantemente o modelo comercial dominante de disseminação do conhecimento científico. O Acesso Aberto e a indexação em bases não comerciais de acesso aberto são pouco valorizados para a elaboração do Qualis Periódicos, fatores que impactam na adesão da comunidade científica à publicação em periódicos científicos de Acesso Aberto, resultando na baixa valorização dos periódicos nacionais.

As Taxas de Processamento de Artigo e os Acordos Transformativos fazem parte de um modelo criado pelas editoras comerciais para manterem seus lucros a partir do conhecimento científico. Há que se notar que o avanço do acesso aberto legal e gratuito, e de iniciativas, ainda que consideradas ilegais, tal como a plataforma Sci-Hub, tem realizado pressão para a diminuição do lucro exorbitante auferido pelas editoras comerciais. Como consequência, as editoras comerciais têm imprimido força para que haja uma mudança no modelo de negócio de taxação da comunicação científica, transformando a cobrança que é realizada na leitura, para a cobrança no momento da publicação, o que evidencia uma clara forma de manutenção e ampliação de seus dividendos. 

Por se tratar de um bem público de extrema relevância para o desenvolvimento do ser humano e para a manutenção da sociedade, o conhecimento científico deveria ser disseminado livremente, especialmente, aquele financiado com recursos públicos. O surgimento do Acesso Aberto representou uma reação aos altos valores cobrados pelas assinaturas dos periódicos científicos eletrônicos no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Atualmente, essas mesmas editoras usam os argumentos do Movimento de Acesso Aberto de forma distorcida, visando apenas o lucro, cobrando uma taxa (APC) para disponibilização do artigo individualmente em acesso aberto. Além disso, a cobrança de APCs contribuiu para a proliferação de editoras e periódicos predatórios.

Uma terceira vertente diz respeito aos Acordos Transformativos propostos pelas editoras científicas comerciais às instituições de ensino e pesquisa, que consistem no modelo denominado de “ler e publicar”. Trata-se de um modelo que promove a transição do tradicional sistema de assinaturas pagas para o modelo de acesso aberto. Com essa mudança, espera-se que os pagamentos das instituições migrem do financiamento de assinaturas para o financiamento por meio de APCs. Esse novo modelo de assinatura oferece tanto o acesso ao conteúdo dos periódicos para leitura quanto a cobertura dos custos de APCs para a publicação de artigos em acesso aberto.  

Como já mencionado, essa  ação representa uma nova forma de obtenção de lucro para essas empresas e a comercialização de um bem público por editoras comerciais sob o argumento enganoso do fomento ao livre acesso ao conhecimento científico. Esses acordos podem sugerir um benefício a curto prazo, mas são insustentáveis a longo prazo e se configuram como um mecanismo de exclusão. Optar pelo caminho dos Acordos Transformativos é optar por uma nova crise, a exemplo da enfrentada no início dos anos 2000.

No cenário atual, não há clareza de como garantir a sustentabilidade do pagamento desses acordos, nem sobre quais critérios serão utilizados para a distribuição de “vouchers” de publicação e quais desigualdades iremos fomentar com a manutenção desse modelo.

Outros países também têm entendido os sistemas de avaliação, da forma como estão estabelecidos na atualidade, como uma barreira para o Acesso Aberto e para a equidade na ciência. Algumas iniciativas internacionais vêm sendo estabelecidas nos últimos anos com o objetivo de reivindicar mudanças nos critérios de avaliação da atividade científica tais como a Declaração de São Francisco – DORA (Dora, 2012); o Manifesto de Leiden (Hicks et al, 2015); Coalitions for Advancing Research Assessment – CoARA (Coara, 2022); o Declaração do Fórum Latino-Americano de Avaliação da Pesquisa – Folec-Clacso (Folec, 2022); a Declaração de Barcelona (Barcelona, 2024); o Relatório The Metric Tide do Reino Unido (The Metric…, 2015); o Manifesto sobre a Ciência como bem público global (Manifesto…, 2023); a Declaração em Apoio à Ciência Aberta com IDEIA Impacto , Diversidade, Equidade, Inclusão e Acessibilidade (REDE SciELO, 2023); a Iniciativa Helsinki sobre Multilinguismo en la Comunicación Científica – Red Europea para la Evaluación de la Investigación en Ciencias Sociales y Humanidades (Helsinki…, 2019); o documento elaborado pela Global Young Academy – GYA, em colaboração com a InterAcademy Partnership – IAP e o International Science Council – ISC (GYA; IAP; ISC, 2023); o Relatório Open Science: Overview and General Recommendations, elaborado pela Academia Brasileira de Ciências (ABC, 2023).

Outra iniciativa relacionada ao acesso aberto e que merece destaque é o Plan S, lançado em 2018, como uma ação do cOAlition S (Schiltz, 2018), consórcio internacional de financiamento da pesquisa. De acordo com esse plano, a partir de 2021, as publicações científicas que resultam de pesquisas financiadas por financiamento público devem ser publicadas em periódicos ou plataformas de acesso aberto. Embora o Plan S preveja o pagamento de APCs, ele defende que esses pagamentos sejam padronizados e limitados, baseados nos custos reais de editoração e não no lucro.

No que diz respeito ao Brasil, o país tem se destacado nas ações de acesso aberto, especialmente nas estratégias da via dourada, sendo o terceiro país com maior número de periódicos registrados no DOAJ (1577 periódicos). Além disso, o Brasil mantém um número significativo de repositórios (190 repositórios) na via verde. Recentemente, várias entidades governamentais brasileiras têm participado na formulação e desenvolvimento de ações relacionadas ao Plano de Ação Nacional no âmbito da Parceria para Governo Aberto, com foco  no acesso aberto e na ciência aberta. Apesar dessas iniciativas e do protagonismo em diversas frentes, o Brasil ainda não possui uma Política Nacional de Acesso Aberto.

Reconhecendo a necessidade e a urgência de instituir uma Política Nacional de Acesso Aberto que dialogue com a Política Nacional de Avaliação Científica, de modo a avançar na consolidação de uma ciência aberta, democrática, transparente e plural, traçamos aqui algumas recomendações:  

PARA POLÍTICOS, GESTORES E FINANCIADORES DA ATIVIDADE CIENTÍFICA

1) Investir em infraestruturas abertas orientadas para a colaboração e a abertura do conhecimento em benefício público.

Há muitas infraestruturas abertas e colaborativas já utilizadas pela comunidade científica brasileira que podem receber investimento para serem aperfeiçoadas e melhor atenderem as necessidades locais e regionais, entre elas podem-se citar o software Open Journal System (OJS), a Plataforma Lattes, o Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos em Acesso Aberto (Oasisbr), o Ecossistema de Informação da Pesquisa Científica Brasileira (BrCris), a Scientific Eletronic Library On-line (SciELO) e outras bases de dados abertas de áreas específicas, como a Base de Dados em Ciência da Informação (BRAPCI) e a Scientific Periodicals Electronic Library (Spell). É importante fomentar a manutenção, sustentabilidade, qualificação e expansão dessas infraestruturas existentes, além de incentivar a criação e a manutenção de repositórios institucionais e temáticos de universidades e institutos de pesquisa, bem como de outras infraestruturas abertas com vista a promover maior visibilidade e legitimação da produção científica brasileira.

A base nacional criada para esse fim, a SciELO, hoje cataloga 321 periódicos nacionais, o que representa aproximadamente 10% do total de periódicos nacionais de acesso aberto que utilizam OJS. A expansão dessa cobertura pode contribuir significativamente para a visibilidade e legitimação da produção científica nacional. O Currículo Lattes também é uma fonte que merece investimentos e maior abertura. Toda pesquisa decorrente da comunidade científica brasileira e suas publicações estão registradas nos perfis dos pesquisadores, como uma obrigação acadêmica. Aproveitar esses dados, tornando-os pesquisáveis, quantificáveis e passíveis de extração, fornecerá mais insumos para a gestão científica nacional e a geração de indicadores próprios. O Oasisbr reúne mais de 4.5 milhões de objetos digitais em acesso aberto, sendo eles teses, dissertações, artigos, livros, capítulos de livro e conjuntos de dados de pesquisa, enquanto o BrCris fornece uma visão global, desde o projeto até o mapeamento dos resultados obtidos em pesquisas científicas, construindo uma visão global com indicadores sobre todo o ecossistema da pesquisa científica brasileira. Esses são exemplos de infraestruturas abertas já existentes e que podem ser utilizadas para a avaliação da ciência brasileira.

2) Fomentar a sustentabilidade e qualificação dos periódicos nacionais de Acesso Aberto Diamante mediante editais de financiamento regular para esse fim.

Os periódicos científicos nacionais de Acesso Aberto Diamante são, em sua maioria, vinculados às universidades e a outras instituições de pesquisa. Essas organizações nem sempre destinam recursos financeiros suficientes para a manutenção e a sustentabilidade desses periódicos. Adversamente, algumas universidades vão na contramão do acesso aberto, destinando uma quantia substancial de recursos financeiros para o pagamento de APCs. Além disso, são escassos os editais de fomento para sustentabilidade e qualificação dos periódicos nacionais, por parte das agências de fomento. O principal edital de financiamento de periódicos científicos, o Programa Editorial do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, não tem mantido regularidade anual, o que causa desgaste e insegurança no trabalho editorial. Sem investimento suficiente, a manutenção da maior parte dos periódicos ocorre com trabalho voluntário da equipe editorial, dos avaliadores e com acesso limitado à infraestrutura disponível nas instituições às quais estão vinculados, fato que dificulta a qualificação e a sustentabilidade desses periódicos

3)  Valorizar o trabalho das equipes editoriais dos periódicos de Acesso Aberto Diamante.

A valorização das equipes editoriais é uma das formas de proporcionar a profissionalização desses periódicos. A atuação como editor de periódicos científicos de acesso aberto deve ser devidamente valorizada em todas as instâncias do processo de avaliação da ciência, tendo em vista o seu grau de importância, responsabilidade e o volume de trabalho para a criação e compartilhamento de conhecimento científico. Na atual realidade, as equipes editoriais desses periódicos atuam, muitas vezes, de forma voluntária e sem compensações financeiras e com um reconhecimento mínimo para fins de avaliação. 

4) Valorizar publicações em periódicos de Acesso Aberto Diamante como critério de avaliação – apoiando modelos editoriais não comerciais, sem taxas de APCs, contribuindo para maior equidade na ciência e enfraquecimento dos periódicos e práticas predatórias.

Com o avanço do Movimento de acesso aberto e o impacto do Plan S, a publicação em periódicos de Acesso Aberto tem sido recomendada, principalmente para as pesquisas realizadas com recursos públicos. Entretanto, como os critérios de avaliação ainda estão centrados no produtivismo, nos indicadores gerados por índices de citação mantidos por editoras comerciais e no prestígio dos periódicos, o modelo editorial híbrido tem crescido como estratégia de acesso aberto, gerando custos altos para sua manutenção.

Outro problema alimentado pelo produtivismo é a expansão de modelos editoriais comerciais, nos últimos anos, conhecidos como periódicos predatórios, que oferecem publicação rápida, mediante o pagamento de taxas, com revisão por pares frouxa ou inexistente. A valorização de periódicos de Acesso Aberto Diamante já tem sido adotada por algumas agências internacionais de fomento à pesquisa, tais como a Fundação Bill e Melinda Gates, que estabeleceram como obrigatoriedade que toda publicação dos resultados de pesquisa financiados por elas sejam veiculados em periódicos científicos de Acesso Aberto no modelo Diamante.

5) Incentivar a utilização de bases de dados não comerciais de Acesso Aberto de maior cobertura global, regional e local para avaliação da ciência brasileira.

Os indicadores utilizados na avaliação atualmente têm como fonte bases de dados comerciais que, além dos altos custos de assinatura, não possuem uma cobertura ampla do conteúdo científico mundial, se concentrando em periódicos do Norte Global e apresentando cobertura limitada de periódicos de países periféricos. Apesar dessa evidência, as políticas de avaliação da produção científica brasileira persistem no uso dos indicadores gerados por essas fontes de informação, limitando a avaliação abrangente, relegando à invisibilidade a maior parte da produção científica produzida no país. Dessa forma, é importante incentivar o uso de fontes de informação de acesso aberto e não comercial que possuam maior representatividade, tais como OpenAlex, OpenAIRE, SciELO, Oasisbr, LA Referencia, BrCris, Latindex, Redalyc, DOAJ e outras bases de dados especializadas como fonte de dados para a avaliação da ciência brasileira. Também é fundamental investir no aperfeiçoamento de fontes de dados como a Plataforma Lattes e na criação de outras bases de dados regionais e nacionais que possibilitem a produção de indicadores e possam contribuir para o processo avaliativo.

6) Reformulação das políticas de avaliação científica, com vistas à adequação aos princípios de Acesso Aberto.

O foco da avaliação da ciência no âmbito nacional e internacional baseia-se, há muito tempo, predominantemente em indicadores de citação quantitativos produzidos por grandes oligopólios editoriais. É fundamental adicionar critérios qualitativos da produção e métricas em nível de artigo como proposto no Manifesto de Leiden (Hicks et al, 2015). Nesse contexto, também é importante considerar para fins de avaliação as práticas de ciência aberta que acompanham o Movimento de Acesso Aberto, como a revisão por pares aberta, o aceite de manuscritos depositados como preprints e o incentivo à disponibilização dos dados científicos de pesquisa em Acesso Aberto.

7) Incentivar uma internacionalização globalizada e menos colonial, que valorize também interações e trocas entre países do Sul Global.

As ações de internacionalização da ciência já são incentivadas há bastante tempo para potencializar a criação de conhecimento científico. Entretanto, é bastante comum que os países do Sul Global busquem a internacionalização entre o eixo Norte-Sul em uma perspectiva colonial. Essa compreensão precisa ser revista, pois também há grande potencial na interação entre os países do Sul Global, tanto para a ajuda mútua quanto para a troca de experiências. 

Devemos buscar a internacionalização da ciência brasileira, promovendo o intercâmbio global de conhecimento e colaborando com pesquisadores de todo o mundo. No entanto, isso não deve se traduzir em uma mera anglicização, em que a produção científica brasileira se alinha exclusivamente aos padrões e expectativas dos países de língua inglesa. É fundamental preservar e valorizar a diversidade temática, linguística e cultural da ciência brasileira, assegurando que mantenha sua identidade própria enquanto se engaja no cenário científico internacional.  

8) Incentivar o multilinguismo na prática científica diminuindo o imperativo do inglês como língua franca da ciência, com vista a garantir equidade.

A institucionalização da língua inglesa como língua franca da ciência pode ser útil para a unificação. No entanto, ela certamente acarreta dificuldades quando buscamos a ampla divulgação da ciência, tanto entre pares de diferentes vertentes quanto nas comunidades locais impactadas pelo desenvolvimento científico. Tem se tornado prática em países não anglófonos (exemplo China e Peru) o incentivo, inclusive financeiro, para publicação em periódicos internacionais considerados de alto impacto. Isso distancia o conhecimento regional e local das pessoas diretamente afetadas por ele. Emblemático foi o caso das primeiras publicações científicas sobre a COVID-19 que, ao invés de serem submetidas aos profissionais da saúde por meio de periódicos locais e em língua local, foram enviadas à revista inglesa Lancet (Lariviere; Shu; Sugimoto, 2020). Há pesquisadores competentes em suas áreas que não são fluentes em inglês, dificultando tanto o acesso a novos conhecimentos quanto principalmente a publicação de seus resultados. Como consequência, aumentam-se as desigualdades na ciência.

9) Incentivar a formação, a qualificação e a valorização dos pareceristas de mérito científico a partir do treinamento dos pesquisadores, com vistas a contribuir para a melhoria do processo de avaliação por pares. 

A revisão por pares é um dos principais mecanismos que confere a validação do conhecimento produzido e se encontra no centro do processo de comunicação científica. No entanto, não existe na formação acadêmica treinamento/profissionalização para a função de parecerista. Esse tipo de formação pode contribuir significativamente para a qualificação dos processos editoriais dos periódicos brasileiros. Além disso, a produção de pareceres oferece apenas ganhos simbólicos, o que precisa ser repensado. Atualmente, há uma crise de pareceristas, com trabalhos demorando muito tempo para serem avaliados e pareceres muitas vezes simplistas, devido ao descompasso entre o volume de produção científica e a quantidade de avaliadores disponíveis e a falta de valorização dessa atividade para fins de avaliação.

10) Incentivar outras abordagens de avaliação da ciência para além daquelas centradas no periódico científico.

As distorções provocadas pelas abordagens quantitativas para avaliar a ciência são excludentes e agravam a precarização do trabalho dos docentes em instituições de ensino, ao incentivarem fortemente o produtivismo. Com essa abordagem, a capacidade de trabalho e de atuação do docente/pesquisador é focada no número de artigos publicados e citações recebidas. Na perspectiva da Ciência Aberta, outras vertentes são consideradas como indicadores de seu trabalho, especialmente a capacidade de formar e mobilizar pessoas que possam atuar com mais qualidade e consciência na sociedade. Dessa forma, é preciso construir desde indicadores multidimensionais que contemplem desde artigos, preprints, trabalhos apresentados em evento, cadernos de laboratórios, livros etc. até indicadores envolvendo aspectos científicos, políticos, sociais, culturais, educacionais, tecnológicos, de gestão entre outros.

PARA ESPECIALISTAS EM COMUNICAÇÃO CIENTÍFICA 

1) Promover a conscientização e o debate com pesquisadores de outras áreas, não especialistas no tema, sobre a importância da abertura do conhecimento e as recomendações deste manifesto.

Apesar de já ter se passado 22 anos, o conhecimento sobre o Movimento de Acesso Aberto, seus benefícios e suas implicações ainda não é disseminado de forma ampla. Um dos fatores que contribuem para essa situação no Brasil, por exemplo, é a falta de uma política de acesso aberto. O debate e o compartilhamento de experiências entre especialistas em comunicação científica e pesquisadores de outras áreas é fundamental para disseminar o conhecimento sobre o Acesso Aberto como movimento de reação aos oligopólios que tentam se apropriar de todo o conhecimento científico produzido, inclusive com financiamento público. Além disso, esse debate pode fornecer subsídios para a construção dos instrumentos de avaliação e de formas mais equânimes e efetivas de adesão ao Acesso Aberto.

2) Promover uma mudança cultural de Ciência Aberta a partir da inclusão do tema como parte da formação de pesquisadores em início de carreira.

O Acesso Aberto não é um movimento focado apenas na produção científica, mas também nos dados científicos de pesquisa. Tanto o acesso aberto quanto a gestão de dados científicos de pesquisa são práticas de ciência aberta que precisam ser conhecidas pela comunidade científica, especialmente, pesquisadores em formação. A inclusão do tema ciência aberta no programa das disciplinas de metodologia da pesquisa, em cursos de graduação e pós-graduação, é fundamental para a capacitação de novos cientistas, tais ações de promoção e formação contínua em ciência aberta podem contribuir com a mudança de cultura científica e maior adesão ao Acesso Aberto.

3)  Incentivar o desenvolvimento de pesquisas para propor novas formas de avaliação da ciência do ponto de vista quantitativo e qualitativo.

O “Altmetrics: a manifesto” (PRIEM, 2010) demonstrou, em 2010, a urgência em discutir e propor novos indicadores de avaliação da ciência, especialmente porque os instrumentos existentes negligenciam o seu impacto fora da academia e ignoram o contexto e o motivo das citações. Desenvolver indicadores de impacto social da ciência, especialmente em termos de benefício para a sociedade, políticas públicas e desenvolvimento sustentável. Cabe ao domínio da comunicação científica desenvolver estudos que proponham formas de avaliação da ciência que sejam diversas, inclusivas e acessíveis.

As recomendações aqui expressas têm como finalidade sensibilizar não apenas a comunidade científica brasileira, mas principalmente os agentes públicos, gestores e financiadores da ciência, quanto à importância da concretização de uma Ciência Nacional realmente Aberta. 

Para tal, é imperativa a construção de uma Política Nacional de Acesso Aberto que entenda a Ciência como um bem público global e que busque promover uma ciência inclusiva, transparente, acessível, reutilizável, colaborativa e compartilhável, capaz de contribuir com a diminuição das desigualdades, promover a equidade e, assim, verdadeiramente contribuir para o progresso da humanidade. Esse é o “impacto” que devemos perseguir.

Entretanto, essa Ciência Aberta que vislumbramos, só será possível com a reformulação da política de avaliação científica atual. Reformulação que incorpore a valorização e promoção do Acesso Aberto não comercial e da Ciência Aberta como elementos norteadores. 

Vale ressaltar que as recomendações deste manifesto estão em consonância com as recomendações da Unesco sobre a Ciência Aberta (2022) e também da declaração BOAI 20 anos.

Convidamos você a lê-lo, citá-lo, divulgá-lo e assiná-lo.

Referências

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ARAÚJO, Kizi Mendonça; SACRAMENTO, Igor; BARCELLOS, Christovam. Movimento de Acesso Aberto: voltaremos ao ponto de partida? Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 746-750, out.-dez. 2023. Disponível em: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/4104

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